terça-feira, 31 de março de 2009

Dalton

-Zinho?
-Diga, minha filha.

Dolant falava com ele assim. Se é que podia chamar de ele. Se é que podia chamar de alguém! Quem é? Ah, aquele que dizem todo poderoso... Deus, Jeová, Alá, que seja.

-Cê num acha que a vida poderia ser mais do que já é?
-Mais como?
-Ah... além.
-Ora, foi para isso que eu dei às pessoas a capacidade de criar!

Dolant pensou bem muito e teve uma ideia: criou um deus. Não foi fácil, teve que ter muita concentração e desejo. Dizem até que passou anos pensando apenas nisso para consegui-lo! Mas criou. E esse deus foi forte: criou uma vida mais do que já era.

-Zinhoinho?
Era assim que
Dolant chamava o deus dela.
-Sim?
-Meu deus me deu o poder de criar meu deus. E se ele também tivesse sido criado por alguém com o poder de criar um deus?

Zinhoinho não respondeu. Não que fosse incapaz; só não queria dar a
Dolant a resposta.

Mas isso não importava, e
Dolant sabia que não.
O que importava é que ela tinha ido além, e isso fez dela seu próprio deus.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Sabedoria materna.

-PUTAQUEPARIU!

Foi o que se deu para ouvir da sala de estar. Saí após uns instantes do escritório, irritado, rumo à cozinha. Minha mãe indagou:

-Derramou o quê?

Como é?

-Como tu sabe?
-Ouvi um "puta que pariu"...

De fato, suco de cajá se espalhava pela mesa de computador no momento.

Ainda descubro como as mães sabem das coisas.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Criando a consciência da incapacidade de leitura.

Há coisas que deveriam ser ensinadas na escola. São muitas, claro, que deveriam substituir outros assuntos estudados por uma razão inimaginável, como os Princípios da Geografia e os ribossomos. Mas esse em mente específico é bem importante: como ler. Certamente haveria disciplinas básicas anteriores, como o alfabeto, interpretação, fábulas e contos de fadas, e aqueles livros do ginásio que sempre falam de sexo, gravidez e AIDS.

Uma vez transportas essas barreiras, viria a arte (arte?) de uma leitura mais... digamos "avançada". Não desmerecendo as outras; cada fase tem sua importância no momento, por mais que se diga depois que foi fácil (apesar de nunca ter sido). Mas enfim, o que proponho para as aulas é... não sei. Na verdade, seria o aluno mais assíduo! Eis que, há pouco tempo, me encontrava numa fase onde achava que os únicos livros que realmente mereciam serem lidos eram os considerados grandes nomes da Literatura. Nunca o fiz externamente, mas ria por dentro ao ver amigos lendo outros livros que não fosse um "Dom Casmurro" ou um "A Hora da Estrela". Tolo, sei. Quebrei a cara ao achar que leria facilmente livros como "Primeiras Estórias" e "Cartas a um jovem poeta".

Mas tudo bem, uma vez percebido que não se pode ler um conto de Guimarães Rosa em 5 minutos (mesmo tendo ele umas 6 páginas), decidi avançar por uma nova tática: leitura balanceada. Era simples: tudo o que eu precisaria fazer era balancear um livro "pesado" com um livro mais "leve". Decidi ter por leveza um... Verissimo, que tal? O pai, não o filho.

Taí mais uma mancada. Nada contra o autor, pelo contrário! Outro cronista como ele por aí não se vê (eu que não vejo, ok, reconheço minha limitação de autores). O problema foi considerá-lo leve. Primeiro que o livro comprado foi "O mundo é bárbaro e o que nós temos a ver com isso", de alto teor político-econômico-social, numa perfeita dose de ironia cruel. Até aí tudo bem, mas o problema é que o que eu buscava era um livro de cabeceira para os minutos pré-sono.

Grande erro! Ler Verissimo me faz, no apagar das luzes, o exato oposto de apagar os infinitos pontos luminosos da minha mente: parece mais uma explosão de fogos de artíficio chineses, daqueles que até desenho de dragão fazem no céu. Isso sem falar na rave de ideias criadas, que por mais explosivas que sejam no momento, contrariam o próprio princípio de rave: apagam-se com algumas horas de criação. Daí crio meu dilema: passar o papel o que o autor me passou para a cabeça ou garantir a noite de sono e, consequentemente, o dia posterior acordado?

Quantas complicações evitadas simplesmente pela existência de aulas não puramente conteudistas nas escolas!

Só que aí vem a dúvida: seriam esses obstáculos necessários para a construção de um melhor escritor?

Talvez não Freud, mas quem sabe Verissimo explica.

-

Ps: sim, foi o próprio gorducho gaúcho que desencadeou o texto acima.

sábado, 7 de março de 2009

Quando ela sumiu - Parte 3

Zé Ninguém seguiu jornada.
Quanto tempo havia? Não havia ideia. Quanto ao tempo, só lhe angustiava o fato de ele ainda não tê-la visto, depois de tanto.
O lugar de encontro era distante. O caminho, pesaroso. Cansaço não o afetava, no entanto. Um estreito rochoso quase o deixou preso, uma montanha não o derrubou por um triz, um rio por pouco não o afogou.
Chegou a uma praia. Nadou. Nadou tanto que seus dedos se enrugaram, os lábios racharam.
Zé Ninguém agora era magro, pele queimada pela luz diária do sol; barba e cabelos por fazer. Mas ninguém o dizia feio: nada se comparava ao peculiar brilho no olhar.
Nadou. Nadou tanto que chegou numa ilha. Andou até achar uma caverna. Lá luz não adentrava; de lá, luz saía. O que se via era um clarão suave, tal par seu olhar.
Não se falaram. Zé Ninguém ficou lá uma noite-dia. Lembrara-se novamente de como se era após as seis da tarde. Permaneceu ali, calado, ao seu lado. E então a olhou.
Não cegou. Não fechou os olhos. Deixou bem à mostra sua essência.
Abriu-se.
Ela não suportou: emocionou-se. Saiu em disparada de volta ao céu.

Aquele dia acabou por não ser dia, mas noite. O astro sumido parecia querer compensar o tempo perdido; o sol aceitou. Cansado como estava!
Zé Ninguém voltou para sua cidade. Vanglórias! Exceto por Maria Mariana Vacumoutra, agora casada com o delegado Pinhazafado.

A verdade é que não lhe importava. Toda noite ele estava lá, e a Lua estava para ele. Aquele que a salvou de sua solidão. Noite tão irradiante nunca antes existiu; nem como aquela, nem comos as que a seguiram.

domingo, 1 de março de 2009

mãe

a língua é meu instrumento primeiro
seria eu quem, assim, sem ela?
alinguado, desexpressado,
desexpressante,
sem língua sou-me aquilo que não quero ser
sem língua sou-me vácuo.

com ela sou-me o mesmo sem
mas passo a poder ser o que quiser.