quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Indo-se

Beijou leve e demoradamente a face macia da avó. Um beijo repleto de amor. Sabia que, a partir dali, de nada mais valeriam seus esforços. Ao menos assim a avó pensava. A neta, pelo contrário, tinha ainda a crença cega na recuperação. E por isso se esforçava como heroína, talvez na esperança de transferir um pouco dessa força à parenta.

Mas não havia o que mais ser feito. A força admirável da garota, por mais que tentasse, não se transmitia para a avó. Foi quando percebeu isso que decidiu deixar um pouco o recinto. Tomar um pouco de ar lhe faria bem.

Quando adentrou novamente o quarto não pôde evitar um leve espanto, acompanhado de um passo hesitante para trás. A avó não estava sozinha no ambiente; junto dela, em pé aos pés da cama, havia alguém que a garota só poderia classificar como um anjo. Assim pensou de alguém com tão grandes asas, capazes até de soterrar o quarto com penas. Suas roupas, contudo, não condiziam com sua condição divina. Mais pareciam trapos, como que pegos emprestados de gente de rua. E as asas não eram brancas como se podiam imaginar; estavam encardidas, levemente irregulares, mal aparadas. A menina questionava a condição angelical da criatura. Não seriam os anjos imaculados? A palavra que em seguida pronunciou veio quase vomitada. Não tinha a intenção de fazer-se notar. Mas se fez.

-Avó?

Os olhos da senhora, outrora tenros para com a criatura posta ao seu lado, agora se abriram brusca e imensamente. Poucos são os que sabem, mas uma abertura de olhos assim é capaz de entregar tudo aquilo que a alma esconde. A neta provavelmente não sabia disso, mas por acaso estava a observar tão atentamente os olhos da parenta que descobriu tudo o que a avó talvez nem fosse lhe dizer. Com a ajuda de seu companheiro, a avó começou a pôr-se de pé. Seguravam- se as mãos como se um já fosse o outro. Pouco a pouco se revelava essa habilidade da menina de notar esses imensos detalhes. Os olhos enrugados não mais estavam escancarados, mas já tinham revelado o que podiam. Disse a senhora as poucas palavras que pôde achar no momento:

-Calma, minha filha.
-Você vai com ele?
-Eu vou, mas eu volto.

E assim partiram. Como se deu a neta não sabe. As asas dele se abriram, e como previsto, inundaram o quarto. De tão grandes não podia a garota ver o que ocorria. Ou talvez fosse o seu susto, que a fez recuar e cobrir os olhos. Quando os abriu novamente, tudo o que havia no ambiente era a cama da avó, e várias penas que ondeavam levemente rumo ao chão. Não só isso. Notou também uma luz diferente no quarto, tons de cores que não lembrava ter visto antes em sua vida. As lágrimas tentavam fazer o percurso rumo aos olhos, mas encontravam a dúvida e a admiração no caminho. Não sabia exatamente o que fazer.

A avó foi; se voltou, não se sabe. Pelo menos a menina nunca acreditou nisso. Achava que era só uma distração para despistá-la. Além do mais, não foi o que os olhos da velha disseram. Contudo, a ida da avó deixou de ser uma preocupação para a neta. Do ali em diante não tinha controle, mas sabia que a avó se fora com a esperança de felicidade. Aquele último momento, de tão forte, certamente tinha se gravado na mente da senhora, e não a deixaria jamais.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

me invadem mundos terceiros,
sem perguntar se os desejo.
e para que tanta educação?
a tudo isso digo não:
entrai-vos!

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Um novo par de olhos

Por um tempo de agora me pus a usar óculos. Admito que no fundo sempre tive curiosidade; não sabia o que me esperava. Primeiramente porque todo e qualquer tipo de partícula parece ser atraída por aquelas duas lentes de 15cm². Mas que posso fazer, é só assim que os minúsculos pontos de luz se ordenam.

O problema é que algo me incomoda ao pôr esse par de gafas. Não sei bem o quê. Nesse mundo de homens tão dependente da visão, pô-los me faz ver tudo diferente. Nítido, mas cinza. E nesse mundo de homens tão dependente da visão, toda a construção que fiz do ao meu redor com o passar do tempo vem-me agora distinta, confusa ao meu antigo ver. Claro que nem sempre fui míope, mas um ou dois dos mais importantes de meus escassos anos foram vividos com a luz se indo a todos os lados.

Eis que, portanto, alterno-me entre os dois mundos. Um onde os conceitos são imponentes, definidos, palpáveis. E o outro, que é minha pátria. Daqui me vim, e aqui me formei e a tudo. Aqui, onde a luz decide ir a outros lugares que não meus olhos, e os pontos trocam de lugar uns com os outros na ordem certa das coisas. Eu sou aqui, e aqui tudo se é difuso. Mas se você chega bem perto, as coisas voltam ao lugar.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

O que me vinha ao vir aqui?

A preguiça é o andamento de tudo o que é vivo. Começa fraco, às vezes nem existe, mas uma hora chega. Com o tempo se cria aquele lodo, e toda a maquinaria pronta para a mais simples atividade vai se travando. A conformidade com o que há vai se tornando maior do que a revolta com o que pode ser e não é. E quando se menos espera, vai dando preguiça de viver e a vida fica com preguiça de ser vivida.

Mas não chego nesse ponto ainda. No momento, foram as minhas lembranças que deram pra preguiçar. Vai ver perceberam como para mim são valiosas, e decidiram aproveitar a valia pra tardar um pouco a vir. Fico aqui com um raciocínio fixo, mas o bombardeio de ideias múltiplas acaba tirando-o do foco. Por agora mesmo já me esqueço do real propósito de iniciar esse texto. Quem sabe me lembro no andamento.

Táticas não faltaram para me habituar às fugas memoriais. Treino a massa cinzenta para me livrar do vazio que esquecer deixa, mas mesmo essas memórias seletas preguiçam do seu propósito de lembrar para não esquecer e abandonam sua função, me abandonando por tabela.

O propósito de estar aqui não me veio à mente. Devo deixar esse texto assim, despropositado. Quem sabe o torne mais humano, e assim ele se junta a nós nessa busca do porquê de ser.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Infinitos e atemporais

Cem anos de solidão terminaram em quatro meses. Nessa relação de tempos medidos, talvez seja mais entendível considerar que são tão distintos tão distintos forem cada mundo. As histórias das vidas solitárias, tão triviais e cotidianas, já vieram datadas e datilografadas, e até dividida em partes. Seja nesse nosso mundo de homens ou em quaisquer um dos outros, a estirpe já estava fadada ao nada de só si mesmos, fado esse ditado por dois grandes sábios, ou ainda um só, que permanecem grandiosos ainda que distantes.

E ao terminar a história dessa casa, formada por tantas outras que só se veem juntas no ser só, a tempestade que nos vem destrói mais uma vez, mas abre em seu lugar um mundo que talvez não seja de homens, nem de coisas vivas. Um mundo que quem sabe, nem seja. Ou que ninguém sabe, mas todo mundo esteja.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Lento retorno

O tempo me passa? Vai ver passa apenas a si próprio, ou a todos nós. Tempo nem deve ser coisa pra se passar.

As palavras me faltam. Não exatamente; elas vêm, soltas, destrinchadas, pedaços de letras, até. Mas só à cabeça. Cérebro, córtex frontal, seja onde for que elas se encontrem. O dia já vem, e me arrependo de eu não ir. À cama.

Me arrependo de muitas coisas. Por mais que se diga mundo afora para não se arrepender. Isso é só mensagem codificada para aquele que a proferiu, na esperança de que, quem sabe, os arrependimentos do falante não pesem mais. Me arrependo de não ter comprado um bonito quadro. Me arrependo também de não mais escrever. De não mais ler como gostaria. E assim, minhas diretrizes, tão fielmente defendidas, me faltam. Sou um hipócrita. Falo de meus ideais, mas não os cumpro.

Sou eu vítima (ou causador?) de pesaroso sentimento, do qual me sinto até envergonhado de dizer qual é. E assim, o que mais gosto, o que mais amo (amo?), o que mais admiro (agora sim!) se vai para longe.

Mas talvez haja esperança. E o que me falte seja o combustível, seja inserir-me no meio. E assim eu volte a praticar o que tanto gosto. Admiro. Talvez assim eu volte a ser quem sou. Ou venha a me tornar quem quero ser. Quem sabe meu universo interno se expanda. Quem sabe siga Einstein e multiplique-se. Infinite-se.

Quem sabe assim eu venha a ser.