sábado, 12 de julho de 2008

Organização.

-Essa casa só vive desarrumada.

Normal, pensou ele. Com normal, ele quis dizer "ah, essa frase tá no grupo das 'você não pode ter nada inteiro!', 'Meu Deus, parem de brigar!' e 'meu filho, quando você vai aprender a dar descarga?'", ou seja, comumente ditas. Em qualquer outro dia a ignoraria por completo, e continuaria a digitar o que quer que fosse aos seus amigos - sem olhar para a tela do computador, claro. Adorava se gabar de tal proeza -, mas não hoje. Fosse o que tivesse sido, hoje era um daqueles dias onde sua cabeça entrava em curto. Hoje era dia de arrumação.

Vinha de repente, como um impulso. Botava na cabeça que deveria arrumar o que quer fosse (geralmente o escritório), e além da cabeça botava também no seu quadro, na lista de afazeres, junto às matérias do colégio que deveria copiar. De repente, sua mãe abria a porta, e lá estava ele, no chão, espirrando; fazia uma bagunça ainda maior, mas por uma boa causa. Ajudaria a arrumar. Ela já nem argumentava mais - e tinha jeito? Tomou um susto ao abrir, mas só aqueles sustos até habituar-se a situação.
-Quer uma máscara?
Ele fez que sim. Cobrir o nariz com a gola da camisa não era o suficiente. Rinite que é rinite resiste ao algodão macio do tecido.

Quando se pegava imaginando o porquê de tal surto, gostava de pensar num mecanismo, como fazia para tantas outras coisas: havia um limite de vezes que poderia ver toda a bagunça. Uma vez ultrapassado esse limite, tirava uma tarde para fazer tudo voltar ao seu lugar. Uma vez arrumado, o tal bagunçômetro voltava à estaca zero. Procurava manter a ordem o tempo possível, mas inevitavelmente o medidor voltava ao ápice.

Parecia até que se tornava outra pessoa. Começou com coisas pequenas, como as camisas no guarda-roupa. Mas era ambicioso; num curto intervalo passou para a escrivaninha do quarto. O mundo viria a seguir. No entanto, havia um obstáculo: o escritório. Há muito pertencera ao seu pai, que não agüentou a falta de espaço e construiu outro. Nesse momento está a construir mais um. É nessa hora que a Genética se vale: ambos acreditavam carecer de espaço. Só que enquanto um cria o espaço necessitado, o outro toma um pedaço e diz ter posse sobre ele. Poderia dizer que dois terços daqueles metros quadrados deixado de herança prévia eram seus, mas faltava ainda um terço que pertencia ao irmão. Não por muito tempo, em sua cabeça. Confabulava planos com a mãe: com o novo estabelecimento do pai, o consangüíneo migraria para outra área, com certeza. Infelizmente, o irmão era resistente. Mas o garoto sentia que era inevitável sua saída.

O método era simples: separar por assunto e, para cada assunto, a progressão do mesmo. Fizera assim com uns livretos de colégio que tinha, mas não demorou muito para doá-los; eram inúteis. Argumentava que a quantidade de papel armazenada era diretamente proporcional à quantidade de estudo, ou seja, o espaço era imprescendível, se quisesse passar no vestibular. Botando tal prova em questão, a mãe nem interrogava. De fato, com a chegada de ficha dos cursinhos X, Y e Z, foi preciso mais para manter a organização. Verticalizou-se. Admirava pranchetas, calendários, rolos de fitas adesivas (durex, crepe e uma marrom estranha que era muito larga, mas sempre se partia antes de atingir a outra extremidade), fotos, quadros, diplomas, pôsteres, até gorro de Papai Noel para natais futuros; tudo nas paredes. Buscava novos lugares mais convenientes para as coisas, e quando não era possível, tentava empurrá-las para a sala: fora dos limites do escritório não era mais o seu departamento. Fazia-o com cautela, pois poderia ser descoberto.

Aaah, mas como já disse, era ambicioso. Muitas vezes sonhava. Principalmente ao passar pelas tralhas do pai. Achava terrível, mas ao mesmo tempo incrível, a capacidade do seu velho de quebrar o princípio da impenetrabilidade: velas de barco, lemes, mastros, maquetes de trimarãs, circuitos elétricos, lâmpadas minúsculas, várias caixas de utensílios mecânicos empilhadas, livros sobre Delphi, Java, Photoshop, Windows e Linux, tudo num único lugar. Agora entendia a letra da tal banda circense. Mal sabia como
seu painho conseguia manter um armário de ferramentas. Seus olhos só podiam brilhar. Ao ver a cena, a mãe suspirava. Devia temer que o filho acabasse virando dono-de-casa.

Um comentário:

Marina disse...

Ser organizado é uma faca de dois gumes... Meu pai sempre diz que com organização e disciplina você consegue tudo. Mas quando você convive com pessoas desleixadas, isso pode se tornar fonte constante de brigas. Falo por experiência própria.

Hoje, alcancei um nível moderado de organização. Convivência pacífica em primeiro lugar. Tudo em busca de uns pontos de tensão a menos nos meus ombros.

Seu blog tem conteúdo. Gosto disso. Se não se importa, vou passar mais vezes por aqui.

Abraço!